Citando Melvim
Quando conheci Melvim eu estava adentrando um mundo bem novo pra mim. Um mundo que hoje é minha realidade, meu local de trabalho, meu dia a dia. Porém naquele momento não era. Tinha apenas ingressado na faculdade de matemática e ansiava por novas amizades. Vi Melvim sentado no chão de um dos corredores do prédio da informática na UFRGS durante o intervalo das aulas. Cabe aqui um pedido de desculpas a Melvim antecipadamente, pois o mesmo tem uma memória que eu definiria como brilhante e não lembro o que falei ou o que ele me falou, mas juntamente com Jorge eles foram meus primeiros amigos de uma fase que pra mim foi praticamente o começo do resto da minha vida. Melvim parecia ter um pensamento mais objetivo que os demais colegas, ele me passava um ar mais maduro que se juntava com seu lado engraçado formando algo novo pra mim em termos de amizade. Me lembro de uma vez ter me dito que a moda entre os colegas de comprar uma mochila com a descrição do curso era uma estupidez e que valia mais a pena gastar a mesma quantia em diferentes tipos de queijo. Eu mal conhecia o gorgonzola. Acho que Melvim tinha percebido isso em mim. Graças a ele eu nunca comprei a tal mochila, no fundo ele tinha razão. Era mais importante ser um estudante do que mostrar que era um estudante. Mesmo que ele nunca tenha usado essas palavras, eu aprendi essa lição. O bacharelado em matemática da UFRGS era uma porrada na cara todo dia. Não tinha tempo para “não estudar”. Diferente de alguns cursos em que as disciplinas apresentam um caráter mais eclético, ali era matemática ou matemática, e em altíssimo nível. Tive medo de rodar em alguma das inúmeras disciplinas e dizerem para mim: “Ué, mas você não gostava de matemática?”. Estudava dia e noite até a primeira prova, e no que diz respeito ao dia, Melvim foi meio companheiro de estudo na biblioteca da física. Até que veio a primeira nota. Eu achava que tinha ido bem, mas tinha certeza de que Melvim haveria obtido um resultado melhor que o meu, era nítido pra mim que aconteceria dessa forma. Quando recebi minha prova e vi que havia tirado 10, já imaginava a nota de Melvim. Me enganei, ele foi bem abaixo disso. Fiquei sem graça de perguntá-lo o que tinha acontecido. Talvez eu tivesse aprendido que levar bem a sério as coisas dava enfim resultado. Não sabia como consolar Melvim e quando tentei, ele previamente justificou sua nota com algumas palavras que nem me lembro. Até me pareceu com certo tom de desculpa esfarrapada, mas até então não era a “cara” dele. Nosso convívio continuou e eu fui conhecendo um pouco mais sobre ele sem fazer muito esforço. Um comentário aqui, uma observação ali e eu fui montando um quebra cabeça da vida do meu novo amigo. Nunca fui de perguntar muito a ninguém. Fiquei abismado quando Melvim me contou que falava latim. Eu mal falava inglês e quando me vi obrigado Melvim me salvou com seu inglês quase perfeito na disciplina de “Inglês Instrumental” nas aulas da professora Dedo (sim, esse era o nome dela!). Somavam-se ao latim, se não me engano, mais outras 5 línguas que Melvim afirmava dominar. Eu não sabia nenhuma delas e não tinha ideia se ele falava a verdade, mas nunca me pareceu ser o caso de estarmos diante de uma daquelas mentiras das grandes. Quando queria, ele também apresentava um português perfeito e em termos linguísticos é inegável que eu gostaria de ser como ele. Se 13 anos depois disso eu falo 6 línguas, tem sim a influência de Melvim. Porém em 2006 eu queria ser matemático e esse pensamento nunca foi sobreposto por qualquer outro. O tempo passou e Melvim foi ficando para trás no curso de matemática. Na medida que eu avançava, eu me perguntava: “O que esse cara, com toda essa habilidade linguística faz nesse curso?”. Certa vez, uma das poucas que tive coragem, perguntei a ele porque ele não fazia o curso de letras, pois a impressão que ficava era que ele se formaria “com um pé nas costas”. Veementemente sua resposta foi: “O que eu faria com esse canudo de letras?”. Para ser sincero, eu não tinha respondido completamente isso para mim com relação ao curso de matemática que eu mesmo fazia. Sabe o cara competente fora do lugar? Sabe alguém fora do seu habitat natural? Era assim que eu começava a enxergá-lo. Um marco na nossa amizade foi quando Melvim finalmente desistiu do curso de matemática. Por problemas de memória vou ficar devendo a data, mas acredito entre 2 e 3 anos após sua entrada. Continuei obviamente falando com Melvim e nossa amizade se manteve. Melvim viajava seguidamente aos EUA e não fazia nenhuma questão de esconder seu amor por esse país. Novamente eu não perguntava o que ele fazia lá. Apenas deixava ele me contar as façanhas norte americanas em seus discursos inflamados de mediocridade direcionada ao povo tupiniquim. Não nego que o Brasil tem seus defeitos, mas como eu não conhecia os EUA até então, apenas absorvia aquelas palavras de um lugar onde tudo era melhor sem a menor possibilidade de estabelecer uma comparação. Melvim era um amigo que me contava bem mais que experiencia de viagens ou cultura linguística, ele foi capaz de me contar sobre algumas coisas da sua vida particular que eu não teria o direito de contar aqui. Me sinto até honrado de ser escolhido para compartilhar muitas dessas coisas. Uma vez encontrei Melvim novamente em um corredor, porém de uma outra faculdade. Já na época em que eu fazia mestrado e tentava me defender financeiramente dando aulas particulares de matemática para estudantes de faculdades diferentes, encontrei-o na PUC-RS de modo até surpreendente. Contou-me que estava cursando direito. Fiquei realmente muito feliz por ele. Achei que poderia ser um lugar perfeito encaixar o conhecimento que ele tinha, uma ideia que não tinha me ocorrido, mas parecia realmente interessante. Achei imediatamente que direito combinava muito com ele. Tomar café com ele na PUC-RS se tornou comum, porém na mesma velocidade em que nossos encontros aconteciam ele externava seu desprezo por órgãos públicos, talvez por não estar mais nas dependências da UFRGS. Mostrava sua opinião sobre a PUC-RS elogiando e salientando os pontos fortes da iniciativa privada, sem deixar é claro de mencionar o quanto a UFRGS era falha. Se no começo da faculdade eu não sabia meu futuro, àquela altura do campeonato eu tinha certeza. Eu seria professor da UFRGS. Os comentários de Melvim não me atingiam, apenas me faziam pensar. Nunca fui de enfrentamentos e discussões e muitas vezes minha opinião não veio a tona por tal motivo. Melvim sempre teve a ideia fixa de que o público não funciona, que o dinheiro movia o mundo e que as relações pessoais eram de suma importância. Quando fui contemplado com uma bolsa de doutorado sanduíche para estudar por um ano na Itália, uma das primeiras pessoas que contei foi para ele. Dessa vez lembro da sua reação e até de suas palavras, pois ao invés do tradicional “Parabéns” ou até mesmo de um contido “Que legal” veio um: “Um ano de dinheiro público na Europa então?”. Achei que não era motivo pra eu brigar com ele ou algo do tipo. Afinal Melvim era meu amigo e não teria ele razões para me desejar algo de mal. A partir dai toda vez que Melvim me contava das suas idas aos EUA, acrescentava ao final da frase: “Fui com dinheiro particular e não público”. Não sei ele queria que eu sentisse mal por ter sido contemplado com uma bolsa de doutorado de uma agência de fomento federal, quando na verdade esse era um motivo de orgulho para mim e para todos que gostavam de mim e acompanhavam minha trajetória. Nas últimas vezes que o vi, ele sempre comentava que faria algo para comemorar sua formatura no curso de direito, mesmo ele sendo uma pessoa que não parecia gostar de festas. Deixou claro também que eu seria convidado para a sua formatura. Nunca fui, nem sei se houve. Entre idas e vindas (minha e dele) ele me comunicou que tinha escolhido morar nos EUA e tinha aceitado um estágio de advocacia na região metropolitana de Dallas. Parecida uma ideia maravilhosa pra quem é da área. A nossa despedida foi mais um café, por óbvio, e nossos diálogos passaram a ser apenas via internet. Meses depois de sua partida em uma conversa com nosso amigo em comum, o Borracha, carinhosamente assim batizado em cartório, descobri por tal amigo que Melvim trabalhava em uma fábrica e não em um escritório como havia descrito a mim anteriormente. Sinceramente, não sei quem estava dizendo a verdade. Decidi que a partir dali, não fazia mais diferença. Supondo que Melvim tenha mentido para mim, a pergunta que fica é: Por quê? Teria ele algum problema em dizer para mim que tinha um emprego de operário? Logo eu que não sabia o que era gorgonzola. Acho que Melvim tinha esquecido de onde vim, quem sou, ou tinha vergonha da pessoa que eu poderia ser, ou que na cabeça dele eu já era. Talvez a humildade que me pertencia não fizesse parte da habilidades dele. De paletó ou não, Melvim continua nos EUA até hoje e nos últimos dois anos muita coisa mudou. Nossos contatos foram se tornando ainda mais escassos. Acabei realizando o meu sonho de ser professor da UFRGS e nem mesmo lembro de como contei a ele, tampouco da sua reação. Nas derradeiras vezes que me comuniquei com ele, seus comentários já pareciam ter caráter irônico e de desdem. Claro que eu posso estar equivocado, ainda mais se falando de uma conversa ou áudio via aplicativo. É muito difícil ter certeza que certos comentários são desse porte. Foi então que veio a primavera de 2018. E pra quem mora no Brasil, sabe que não foi nada fácil conviver aqui nessa época. Fomos tomados de um emburrecimento geral da nação. Marcados por uma eleição que mostrou não só que a maioria do nosso povo pensa única e exclusivamente no seu umbigo, como também conta com uma limitação educacional e política inacreditável. Pensei subitamente em comentar isso tudo com Melvim e ver qual era sua visão, já que um cara estudado (ou ao menos dito isso) provavelmente não se encaixaria na descrição da maioria da nossa população. E no momento que pensei em fazer isso, tive medo da sua opinião. Um medo que deu lugar a uma decepção quando Melvim me enviou um dos tantos vídeos editados que circulavam no whatsapp que nada mais era que o trecho de um filme antigo cujo apenas a dublagem fora alterada. A cena era de um diálogo pré tiroteio em que após a dublagem um homem armado perguntava a outros dois em quem eles votariam na eleição e após ambos afirmarem que era o PT, o homem atirava matando-os e gritando: “Aqui é Bolsonaro!”. Ele escreveu após o arquivo ter sido enviado a seguinte frase: “Agora vai ser assim no Brasil hehe”. O que Melvim queria me dizer? Ou melhor, o que Melvim queria que eu pensasse? Como disse Wagner Moura em uma entrevista recente: “Vivemos no Brasil uma ode a mediocridade e a pobreza intelectual”. O mais triste disso tudo não foi o resultado da eleição, mas sim conhecer de fato as pessoas que apoiaram um candidato a favor de tortura e ditadura militar. Um fascista e racista da pior espécie. Um político incompetente que em 28 anos de política não teve uma ideia relevante. Que como cabo eleitoral usou o argumento de que era honesto e em menos de um mês de governo sua carapuça caiu. Eu poderia dizer que não foi por falta de aviso e sabendo disso eu sei porque votaram nele. Porque pensam como ele. Tem as mesmas ideologias. Os ricos no Brasil não suportam a classe média se dar bem em nenhuma hipótese. Isso tem nome, se chama recalque. É inadmissível ver um torneiro mecânico chegar até a presidência da república. E isso infelizmente se estende em toda nossa sociedade. Nosso amigo Borracha postou na mesma época que tem aversão ao funcionalismo público, após ter feito quatro concursos públicos sem ter sido aprovado em nenhum. Pergunto se diria o mesmo caso tivesse obtido a aprovação. Pergunto ainda se fiz certo ao consolá-lo quando veio me procurar porque estava mal por isso. Ele também é mais um dos tantos exemplos. Enfim, minha decepção com Melvim não parou por ai, pois suas mensagens também não paravam. Uma delas, a foto de um pai batendo no filho com um chinelo e a legenda: “Mourão versus Resistência”. Eu não tenho paciência pra esse tipo de estupidez. Acho que Melvim não tem nenhuma noção do que está acontecendo no Brasil ou se ele é como a grande maioria dos brasileiros que pensa apenas no seu umbigo (e nesse caso é bem fácil, pois está bem longe). Um dia após o natal escrevi uma postagem comentando sobre o conceito de Natal e ele me replicou o seguinte: “Tu virou comunista depois de assento público ou antes?”. Eu gostaria de entender o que passa na cabeça de quem acha que uma posição política é demérito ou algo do tipo. A ponto dele tentar me ofender com isso. Primeiro porque não sou comunista, segundo porque isso nunca será uma ofensa. Nunca perguntei a Melvim em quem ele votou ou se ele votou, acho que sei a resposta. Escrevi para ele explicando educadamente minha posição, dizendo tudo que penso e que nenhum meme ou frase grosseira vai me ofender, mas sim me deixar triste e julgando uma amizade de mais de uma década. Sua resposta foi um sonoro e cheio de conteúdo: “kkkkkkkk”. Os memes nunca pararam de chegar. Até que tive que bloquear Melvim, pois não aguentava mais. Foi então que, quando achei que tudo tinha se acalmado, recebo um e-mail dele com a seguinte descrição:
Assunto: “Hey, você, cronista, palestrante, conferencista e escritor”
Corpo de e-mail: “Vai deixar que um leve desentendimento dissolva nossa amizade de mais de uma década? E poxa, dentre as crônicas nenhuma referência a mim? Nem um título, parágrafo, linha ou frase? Será que ao mudar a quantidade de experiências a sua qualidade como pessoa também mudou? Prove me que estou errado, matemático. Melvim.”
Vamos por partes. Com relação ao assunto do e-mail, Melvim provavelmente quis ser irônico e se referiu ao meu site, onde descrevo minhas funções profissionais e tudo com o que eu trabalho. Ou será que não posso ser palestrante por não falar latim? Será que minha última palestra sobre “carreira nas exatas” não motivou ninguém? Será que a última conferência que participei na Inglaterra sobre energia nuclear não serve para nada? Ou as coisas que escrevo são ruins porque não tenho aquele diploma de letras que ele mesmo disse não servia para nada? Talvez Melvim ainda não tenha entendido que o mundo é cada vez mais plural e que quem não tenta ser multifuncional talvez não tenha um futuro garantido. Vou dar essa dica para Borracha também. Mas se Melvim concorda com o meme do chinelo com nome do Mourão batendo na criança, talvez ele não tenha capacidade para isso mesmo. Com relação ao corpo do e-mail, Melvim falou em desentendimento. Não Melvim, acho que já entendi tudo. Não tenha dúvidas disso. Minhas experiências pessoais e profissionais me enriqueceram como pessoa sim. É mais uma coisa da qual eu não tenho dúvidas. Minha qualidade como pessoa não iria piorar depois de todos esses anos e vivências. Ou você me viu por ai mandando via internet alguma incitação a violência, como por exemplo, um meme de um pai batendo em uma criança ou alguém atirando em outro alguém por causa de opinião política contrária? Pensando aqui com meus botões, me pergunto se Melvim está bem. Porque teria ele a necessidade de ser irônico com o que faço ou desdenhar o trabalho de um “suposto” amigo. Do fundo do coração, tomara que Melvim esteja bem, que seja feliz lá e tenha uma vida tranquila a ponto de não tentar diminuir nada do que os outros fazem. Para terminar, não sei se provei que você está errado Melvim, na verdade nem é minha intenção. Só queria dizer que não consigo pensar no mal de ninguém, nem mesmo o seu. Sendo assim, quanto a reclamatória da citação, acho que você ganhou bem mais que isso.